Querida Tia foi um dos livros mais diferentes que já li este ano, quiçá na vida, mas não é o livro perfeito, é um livro que com suas imperfeições traz muitas reflexões...
Saudações, Leitores!
Querida Tia (Tata, 2024) é um dos romance da francesa Valérie Perrin, escritora que conquistou o público com sua escrita sensível. Este é o meu primeiro contato com uma obra da autora, embora ela já seja bastante conhecida no Brasil pelos livros Água Fresca para as Flores (até tenho o livro, mas ainda não li) e Três. Pelo que já li sobre a autora, sua escrita costuma explorar o cotidiano e os laços humanos com uma delicadeza que toca fundo e isso se comprova com o Querida Tia.
Em Querida Tia vamos acompanhar a história de Agnès que em um determinado dia recebe uma ligação de um policial dizendo que sua tia Colette Septembre tinha morrido, provavelmente enquanto dormia, mas o mais impressionante é que a tia Colette já tinha morrido há 3 anos e estava enterrada no cemitério de Gueugnon. Por ser a parente viva mais próxima de Colette, cabe a Agnès voltar para a cidade e reconhecer o corpo, porém o que mais intriga Agnès é o motivo de sua tia ter mentido sobre sua morte e quem, de fato, está enterrado há 3 anos no cemitério. Alerto, desde já que esta resenha, a partir de agora terá SPOILER.
Quando Agnès volta para Gueugnon procura desvendar esse mistério e se reencontra com antigos amigos que acabam se tornando testemunhas de uma misteriosa mala cheia de fitas cassetes onde Colette gravou sua história e, consequentemente, a história da vida da família de Agnès, o mais interessante é que essa narrativa está ligada a um destino que envolve circo, nazismo, paixão por time de futebol, serial killer e fuga de um predador sexual. É coisa demais, não é mesmo? Confesso que demorei um pouco a engatar nessa história, porque eram tantas informações que no início parece confuso demais, porém com a persistência a gente começa a conectar o que está sendo contado.
Dessa maneira, temos uma história que não é linear, mas uma narrada no "presente", ano de 2010, e uma no passado que vai permear vários anos. Nessa história de 2010, acompanhamos - claro - Agnès investigando o passado de sua tia e vivendo uma separação conturbada com seu ex-marido que já está com outra mulher, mas que Agnès não está conseguindo superar. A história do passado fica a cargo de Colette que através das fitas irá reconstituir sua vida e entrelaçá-la com outras pessoas que estão intimamente ligadas a Agnès. Entremeada a essas duas narrativas mais marcantes, temos outros narradores e até mesmo partes de um roteiro escrito por Agnès - que são meio chatas, confesso.
Apesar do início confuso, de estranhamento e denso, pode ser necessário que o leitor persista (a não ser que já conheça o estilo da autora, então já deve esperar por esse tipo de estrutura) Querida Tia acabou me envolvendo depois que engatei na história e me acostumei com o estilo de escrita de Valérie Perrin passei a reconhecer a extrema sensibilidade de contar várias histórias de forma delicada, mesmo abordando temas sensíveis, é uma obra que dialoga com temas caros à literatura contemporânea: A memória como construção identitária, o fato de que para nos entendermos em nossa individualidade é necessário conhecermos nossa história ancestral; O feminino em suas diversas gerações, como nossas antepassadas evoluíram ou tiveram que abrir mão para estarmos onde estamos; Os silêncios familiares, o quanto não somos capazes de conhecer 100% as pessoas de nossa família; O trauma como herança, quando carregamos coisas de nossas gerações que sequer sabíamos, mas que nos traumatizaram de alguma forma. Achei bastante sensível.
Além disso, Perrin não trata apenas da história de Colette e Agnès, mas de todos os amigos antigos e outros personagens que cruzam a vida das protagonistas, ou seja, lança muitos personagens de uma só vez, e pode ser difícil entender as conexões entre eles nas primeiras páginas. Há um certo excesso de nomes e detalhes que, no começo, causa estranhamento. Contudo, à medida que a leitura avança, o texto ganha ritmo, e a prosa da autora se mostra envolvente, poética e repleta de emoções sutis. No entanto, vale ressaltar que ela também acaba não aprofundando todas as histórias dos personagens e alguns deixa sem desenvolvimento e outros com um desfecho meio "furado", mas creio que se relevarmos esses deslizes a história é suficiente, sabe?
Mas não foi só isso que me incomodou na leitura tem alguns pontos que me parecem exagerados e incoerentes, por exemplo, o fato de que o livro dá a entender que a relação de Agnès com a tia é próxima, porém mesmo que Agnès sempre tenha passado as férias de verão com a tia, as duas quase não conversavam, que viviam em um grande silêncio e é por isso que mesmo nutrindo carinho elas não se conheciam de fato, mas então tudo o que Colette sabe e esconde para revelar depois de sua morte acaba não encontrando justificativa, porque ela NUNCA sinalizou nada para a sobrinha, nem um afeto ou diálogo a mais, por quê não confiava na própria sobrinha? O livro não traz de fato essa resposta, mas podemos fazer suposições, mas nenhuma me convence de fato, porém seres humanos fantasiam coisas, e pode ter sido isso que fez com que Colette silenciasse por tanto tempo, mesmo após a morte de Blanche nunca ter revelado nada.
Também me incomoda o fato de ter surgido um serial killer e ninguém ter tomado a ação mais óbvia de todas: procurado a polícia, pedido uma medida protetiva, sabe? Eu sei que os tempos eram outros, mas a pessoa podia ter mudado de pais, falado com a polícia, pedido socorro para um amigo, fugido e desaparecido do mapa, não? Não é o mais lógico? Sei que tem a questão do medo, de dependência emocional e financeira, mas não me parece que a personagem tinha tanta coisa para perder se arriscasse. Mesmo assim, o serial killer envelheceu, não faz muito sentido que essa pessoa ainda tivesse medo de um homem com, tipo 90 anos de idade, né? Sendo já ela uma senhora de idade, por que não denunciar, encontrar sua voz? Lutar por justiça? Blanche tinha amigos que poderiam ter ajudado ela, porque ela preferiu viver a vida da forma que viveu?
Como falei dos personagens secundário e disse que às vezes Perrin não desenvolve bem a história, vou exemplificar com a história do amigo, Lyéce, que se tornou alcoólatra por ter sofrido pedofilia quando criança, mas está reabilitado, reconstruindo sua vida após alguns acontecimentos, mas esse cara que estuprou ele, é assassinato e a gente até suspeita de alguém que possa ter cometido o crime, mas a autora traz um personagem que sequer estava com relevância na história e que não demonstra nenhuma espécie de justiça real, ou melhor que a justiça pode ser feita com as próprias mãos e que NADA acontece. Que fraco e que absurdo! Então Blanche também poderia ter feito justiça com as próprias mãos também, por essa lógica da autora, não é mesmo?
Outro ponto que me incomodou do início ao fim foi a obsessão da Agnès pelos ex-marido, ela simplesmente perdeu o rumo ao ser trocada por outra mulher, como se a identidade dela fosse o marido e agora que ela não o tem mais, não tem mais vontade de trabalhar ou fazer coisa alguma. Uma relação de dependência emocional tão grande e muito tóxica. Mas a retratação é que no decorrer das descobertas da vida da tia Colette, Agnès também vai se reconstruindo e aprendendo a largar as memórias idealizadas do ex-marido.
Mas se tem algo extremamente bizarro nesse livro e que eu tive que soltar um PQP bem grande foi o fato do pai de Agnès, Jean Septembre, e irmão de Colette, ser um músico inteligente, talentoso e famosos, ter traído a esposa com uma mulher que, durante o livro todo foi mencionado que era a CÓPIA física de Colette (ou seja, de sua irmã), como se fossem gêmeas. Jean ter traído sua esposa por uma mulher amiga de sua irmã e que era a cara dela me deixou tipo imaginando o que ele pensou, algo como: "Vou aqui dormir com essa mulher que é a cara da minha irmã" ou deve ter pensado "Essa mulher é igualzinha a minha irmã, vou transar com ela". Que nojo, é bizarro demais. Não faz sentido nenhum na minha cabeça. É nojento, principalmente porque ele sequer a conhecia ou estava apaixonado por Blanche, ele traiu a esposa simplesmente por trair e ainda por cima com uma mulher que era a cara da sua irmã.... Isso não é doentio? Pra completar toda essa novela - quase mexicana - a esposa dele, de Jean, aceita a traição e aceita TUDO, como uma pamonha, aceita criar a filha que ele teve com a amante, eu entendo alguns dos seus motivos e ela ter aceitado criar a filha de outra mulher como se fosse sua, mas vamos ser honestos: qual esposa se tornaria próxima da amante? Mandaria notícias da filha que ela está criando para a mãe biológica? Que absurdo! Não. Não. Não. Tem muita sensibilidade aí e humanidade, é bonito de ver, mas não soa real, sabe?
Mesmo reconhecendo os muito pontos fracos que elenquei acima e talvez poderia ter ressaltado outros, isso não diminui a beleza da leitura.
Provavelmente Querida Tia foi um dos livros mais diferentes que já li este ano, quiçá na vida, pois pense comigo: quantas histórias com personagens protagonistas sapateira e amante de futebol você já leu? Quantos livros tem uma roteirista que vive uma crise existencial? Na verdade, a autora traz esses personagens que sofrem de apagamento literário e torna tudo bem amplo, sem contar que abordou várias temáticas de maneira sensível: relações familiares, a relações de amizade como um dos grandes amores que alguém pode ter na vida, a relação de cônjuges e a relação filial, mas mais do que isso, trata temas dolorosos como assumir sexualidade (que ainda é complexo para algumas vivências), estupro, violência doméstica, violência e maus tratos aos animais, obsessão, quebrar ciclos, entre muitos outros. É um livro que tem muita coisa mesmo.
Pra finalizar, porque esse veredito ficou gigante, Querida Tia é uma obra sobre lembranças, afetos e o poder redentor da escuta. É um livro que fala sobre o tempo, mas também sobre o que permanece e, talvez, sobre aquilo que nunca conseguimos realmente dizer. Não pense que por eu ter elencado pontos fracos no livro eu o desmereço, na verdade, não. Achei um livro bom e pretendo ler outros livro de Valérie Perrin com certeza.
Espero que tenham gostado do veredito e obrigada por terem lido até aqui. Até a próxima postagem!
FICHA TÉCNICA |
Título Original: Tata Autor: Valérie Perrin Tradutor: Sofia Soter Gênero: Ficção. Drama. Editora: Intrínseca Ano: 2024-2025 | 496 págs. País de Origem: França Classificação: +15 Aviso de Conteúdo: Violência doméstica. Luto. Traição. Maus tratos aos animais. Serial Killer. Pedofilia. Abuso sexual. Assassinato. Relações familiares tóxicas. Minha avaliação:⭐⭐⭐(3/5) |
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